Angels - Capítulo 08
Capítulo 08
Estação
Pov Ethan
A culpa pesa em meus ombros conforme caminhamos, os três em silencio, na direção que Surgat nos apontou, com os dois atrás de mim. Eu não devia ter ido naquele palco se soubesse onde isso iria me levar: o Eros me convenceu a ir apenas pra eu provocar, mesmo sabendo que isso não é nada divino e, bem, quase fiquei nu e anulei um dos meus juramentos como anjos, mas os toques eram tão bons… Diferente do de Surgat, que é um pouco grosseiro, o do Eros é tão leve quanto de uma pluma e com certeza ele deve ser bom nas outras coisas que faz.
Bato em meu rosto: o que eu estou pensando? Isso não é certo para um mensageiro de Deus!
-Ei, cuidado. – a asa do demônio me envolve e me puxa pra perto de si, prendo a respiração querendo que ele não me beije, não na frente do Reahel, pelo menos. – Pode se machucar assim, anjinho.
Abaixo a cabeça e apenas concordo, aumentando a distancia entre nós, o anjo pigarreia e atrai nossos olhares, com vulcões em erupção em seus olhos geralmente serenos, como se estivesse sem paciência nenhuma.
-Você – ele gesticula pra o maior – crie distancia porque o garoto é puro, como todo bom anjo, então nem tente o tentar porque senão eu vou te afastar a força e você, Ethan, – tem raiva contida na forma que ele pronuncia meu nome, ele demora um momento para terminar a frase – apenas tome cuidado com quem se envolve.
-É pecado mentir… – Surgat cantarola e ganha apenas um olhar irritado, enquanto entrelaça o braço ao meu.
-Omissão de detalhes não é pecado: é apenas a forma que nós vivemos por dois milênios.
-E por isso são hipócritas. – sou abraçado com força contra seu peito. – Claro, com exceção do anjinho: ele é puro. – a forma que ele fala me faz sentir um arrepio bom e um estranho enjoo, mas também me dá a impressão de que ele é equivalente aos tarados que ficam observando crianças em jardins de infância. – Certo, Ethan?
Começo a mover minha cabeça pra cima e pra baixo, meio desnorteado, mas o olhar assustador de meu irmão me faz mudar abruptamente para movimentos de “não”, que os faz rir baixo, por mais que a expressão de Reahel pareça ter sido esculpida em cimento. Deixo-me ser conduzido pelas ruas do Inferno, sendo apertado mais forte quando passamos pelas flores lindas atraentes de cheiro doce, Reahel segura a asa alheia nos mesmos lugares.
-Uma curiosidade sobre a saída do Inferno: somente demônios e seus… – Surgat nos analisa por um momento. – Agregados… São permitidos a atravessar, pra não correr o risco de almas errantes inventarem de fugir do Dia da Eliminação e o poder da Lúcifer protege esse tipo de estrutura. – começa a explicar, apontando para uma construção impressionantemente grande.
É como um prédio com dois andares, mas o térreo tem um pé direito alto que facilmente chega a cinco metros, com as portas e janelas formando uma curva de forma a arredondar as laterais superiores, dando a impressão de algo antigo, mas ainda tem um charme. No topo das janelas, tem mármore branco esculpido formando desenhos que não identifico, mas que Surgat provavelmente deve saber o que representam, o destacando do resto da construção de tijolos avermelhados.
As escadas que levam para a entrada são feitas de tijolos de pedra cinza com pilares brancos muito bem trabalhados chegando até o teto simplório de cor escura em comparação com a grandiosidade do lugar, o que cria um charme extra. Ao lado das escadas principais, dois jardins de flores altas embelezam a frente do lugar, quebrando a seriedade e dando um ar aconchegante e menos frio, o que aquece meu coração. Surgat se curva sobre o baixo muro de flores para pegar uma laranja com longas pétalas e centro amarronzado, a qual coloca em meu cabelo, emaranhado em meus fios castanhos.
-Uma flor para o mais belo. – sussurra com a boca perigosamente próxima a minha, me arrepio inteiro pensando na chance dele me beijar.
-Mantenha uma distancia respeitosa, demônio. – o loiro afasta o outro com a ponta do bastão, se pondo ao meu lado. Tanto o agradeço quanto reclamo internamente.
-Não seja estraga prazeres, Rea, não enquanto eu estiver cuidando dos dois pra não virarem pasta de anjo. – os dois sustentam o olhar um do outro. – Ou melhor, enquanto eu cuido pra você não virar pasta de anjo servido pra um morto aleatório, já que o anjinho eu vou tomar conta mesmo.
Reahel bufa enquanto concorda com a cabeça, os sigo conforme subimos pelas escadas de pedra em direção à porta alta. Uma barreira grossa meio que varre os chifres de Surgat e minhas roupas demoníacas, trocando para uma toga que vai até o meio de minhas panturrilhas e um par de mangas falsas, revelando meus ombros e meus braços, com apenas uma faixa discreta branca no meio de meu bíceps para prendê-la. Um degrade de branco a azul claro se faz presente por toda a roupa, Reahel também usa a roupa, mas com o degrade de verde. Sou parado por meu irmão antes de continuar acompanhando o moreno, suas mãos descem para meu peito.
-Seu crucifixo, El: não deixe ficar de ponta cabeça, irmão. – suas mãos se demoram rodando a cruz para a posição correta, como se fosse estranho. – Onde conseguiu esse?
-Surgat me deu quando eu cai da gaiola. – ele para, mas não sobe o olhar para meu rosto. – Ele me levou para passear um pouco na Terra.
-Foram muito longe?
-Conheci duas demônias amigas dele e depois eu só lembro de acordar de novo na gaiola sem crucifixo, mas o coloquei durante o passeio na barca do rio Coceonte.
Ele franze a testa, mas não comenta nada, gesticulando para continuarmos seguindo o moreno, que entrou na construção e se debruça sobre uma bancada branca com um ciclope assustado do outro lado. Percebo uma coleira em seu pescoço, ligada a uma corrente extremamente grossa presa ao chão, ele parece em pânico com a presença de Surgat.
-Como assim as passagens pro Jahannam foram fechadas?
-E-e-eu si-sinto muito, se-senhor…
-MEU PAU QUE SENTE MUITO! – ele quase se joga por cima da mesa. – EU POSSO TE LEVAR PRA UM DOS CAMPOS DE TRABALHO FORÇADO, SEU DESGRAÇADO, ACHAR SUA FAMILIA EM VIDA E TOMAR COMO MEUS ESCRAVOS SÓ PRA BATER NA SUA FRENTE! AGORA, ABRA A PORRA DA PASSAGEM PRO JAHANNAM.
O ciclope começa a chorar e Surgat não para de o ameaçar, Reahel aperta a ponte do nariz como se não pudesse acreditar no demônio e seu estresse por algo banal. Aperto gentilmente o braço do garoto e ele me olha, a feição suavizando ao me ver.
-Ele não tem culpa da gente não poder ir, talvez eu possa esperar em algum lugar até sua amiga voltar.
-Nada disso: – tenho vontade de revirar os olhos para Reahel, – ou você vem comigo ou aceita que caiu!
-Isso seria ótimo: ele não precisaria ouvir bobagens vindas do Pai.
-Não são bobagens!
-Você mesmo já disse que eram bobagens! – um sorriso malicioso delineia os lábios de Surgat, o que faz meu irmão corar: o que está havendo? – Antes de eu cair, passávamos horas falando sobre as inconsistências Dele.
Os dois se afastam um pouco da bancada para discutir com raiva concentrada, já eu me apoio direto na bancada, quase que debruçado, me permitindo olhar direto no olho vermelho do ciclope, que parece intimidado com minha presença.
-Meu… Amigo… Disse que vocês, pecadores, adorariam ter as penas de um anjo para fazer uma bebida toda especial, é verdade? – abro as asas de provocação e seu olho brilha, a estendo em sua direção, que hesita em passar a mão. – Se liberar as nossas passagens, te dou seis penas dessas da ponta, que são maiores.
-Feito. – ele some atrás do balcão por um breve momento e retorna com uma pequena chave dourada. – Coloque na porta e gire três vezes, vai abrir o portal para o inferno islâmico e depois sumirá, aí é só atravessarem.
Lhe entrego a asa e mostro quais penas puxar, as quais ele sequer hesita, grito, o que atrai a atenção dos dois briguentos para mim. Prontamente, Surgat me abraça como se eu fosse um bebê de colo e Reahel coloca o bastão no pescoço do ciclope, que segura fortemente minhas penas, lhes mostro a chave.
-Consegui, podemos ir?
-Dedicou uma das suas penas só pra ver o Velho novamente? – Surgat acaricia meu cabelo, como faria com uma criança, respiro fundo em seu peito para tentar conter as lágrimas. – Você é bem dedicado, anjinho, mas não espere que ele seja tão gentil retribuindo: Luci ganhou ódio e “fake News” espalhadas por todo o globo.
Concordo com a cabeça, ainda com a cabeça em seu peito, sinto a mão fria de Reahel em meu ombro e sou puxado pra ele, ganhando um braço protetor em meus ombros. Ele me conduz para a lateral com uma placa escrita “entrada” em latim e decorada com ossos dos mais variados, voando sobre uma catraca também feita de ossos, nos dando acesso a um lobby de madeira clara no chão e grandes cadeiras com massageadores exclusivos para asas, me sinto tentado a ir ali, como uma criança diante da loja de brinquedos.
-Não temos tempo para ir lá, carinha.
-Deixa o menino se divertir, Rel, já basta Deus sendo o chato do rolê. – sou puxado novamente, dessa vez pelo demônio e empurrado na cadeira, que começa a vibrar instantaneamente, me fazendo arrepiar até os pelos do rosto. – Viu como ele gosta?
-Eu não vou discutir isso com você. – com um gesto de seu indicador, me levanto, em silencio. – Onde vamos agora? Quero sair logo daqui. – ele se põe a caminhar na frente, Surgat abre uma das asas e me envolve como num cobertor, me permito diminuir a distancia entre nós, o que parece o agradar.
Os acompanho mais para dentro da enorme construção, onde alguns “metahumanos” limpam o chão com esponjas no lugar dos pés sob os olhos azuis brilhantes atentos de um gárgula de pedra com uma flail enorme ao seu lado, com a bola maciça e cheia de espinhos presa ao seu braço esguio.
-Gárgulas são mal humorados: tente manter uma distancia razoável deles. – sua respiração próxima a minha orelha me faz tremer de um jeito bom, que ele definitivamente percebe.
-Eles não dão problemas para vocês?
-Eles são fáceis de fazer, sem contar que são extremamente leais a quem os cria: o próprio Eros tem gárgulas para cuidar da segurança do B&B.
Paramos numa quina, ao lado de um cervo humanoide que parece entediado enquanto empurra seu carrinho de limpeza, Reahel parece bem surpreso com o lugar, por mais que tente manter o rosto impassível. Surgat o conduz com uma mão em sua cintura até uma série de pilares de madeira com portas e fechaduras grandes ao lado de cada uma, sua asa me deixa e me sinto exposto, meu irmão toca uma das portas fechadas.
-Isso são…
-Portais para outras religiões, Rel, para a maneira de pensar variada de cada uma das religiões existentes ainda vivas no mundo. – um gesto para que centenas de portas nos cerquem, cada uma com algum símbolo que as representa, me sinto tonto com tantas visões de mundo. – Claro, ainda tem as portas dos radicais aqui no meio, mas elas são ainda mais protegidas pela Nobreza do Inferno e por mim. Claro, cada lugar protege suas passagens para outras visões com uma maneira diferente, mas aqui, somos nós.
-Você deixou arrancarem uma pena do Ethan por nada?
-Eu sigo as regras, pelo menos com isso. – as portas voltam aos seus lugares e Surgat seleciona uma, de madeira clara. – Eu não ganho nada se eu abrir livremente, sem contar que tem a chance de algum humano invadir, por isso que sigo essas regras especificas.
Uma piscadinha pra mim, lhe entrego a chave com um sorriso tímido, a qual é posta na fechadura e girada três vezes.
-Fechem as asas e apenas as abram quando sentirem o gelado passar. – avisa, vendo a chave sumir, Reahel hesita, mas vai primeiro e some numa fumaça em tom de verde.
Recolho as asas e ponho a mão, sentindo um frio quase congelante, mas o demônio faz um sinal positivo com os polegares, olho novamente para a fumaça me sentindo corajoso e, dessa vez, me jogo de cabeça.