Registros Transitórios de Dinghai - Capítulo 4
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- Capítulo 4 - Desentendimento
No quarto ano da era Taiyuan, no segundo dia do segundo mês. A cidade de Xiangyang estava envolta em chamas de guerra, quando um cavaleiro solitário irrompeu da cidade, dirigindo-se para o sul, enquanto rompia a cortina de fumaça negra, e galopava para longe, cada vez mais longe.
Ao meio-dia, quando o sol radiante estava alto no céu, Chen Xing não parava de incitar seu cavalo, para fugir de Xiangyang, levando Xiang Shu consigo, galopando por quase vinte li. Multidões aglomeravam-se pelo caminho; a Estrada de Dangyang, ao sul, estava repleta de plebeus que fugiam da calamidade com suas famílias. Lamentos de angústia varriam a terra por um momento, a estrada estava tão congestionada que mal se conseguia dar um passo à frente, e os gritos daqueles que procuravam seus entes queridos pareciam ecoar sem fim.
Cento e cinquenta anos atrás, Guan Yu havia sitiado a guarnição de Cao Wei fora da cidade e afogado seus sete exércitos, alcançando assim gloriosas façanhas militares. Mais tarde, Maicheng foi perdida em derrota, e a rota que eles tomaram foi exatamente esta estrada. Gritos de dor sacudiram céus e terra, como se o povo estivesse participando de um memorial para o imortal Deus da Guerra, que viveu nas Terras Divinas muitos anos atrás.
Chen Xing estava consumido pela ansiedade. Percebendo que não conseguiria passar pelo meio da multidão, viu-se obrigado a seguir por uma trilha alternativa. Ao chegar ao pé de uma montanha, colocou Xiang Shu no chão e desfez as pesadas cordas que o mantinham firmemente amarrado.
Em uma era de guerra, nove em cada dez casas estavam desertas em Jingzhou. As pessoas ou cruzavam para o sul, em direção a Jiaozhi, ou fugiam para leste, para Jiankang, Gusu e outros lugares. Chen Xing atravessou o bosque e encontrou uma pequena vila ao pé da montanha. Naquela tarde em que inverno e primavera se alternavam, a névoa começava a se levantar, e tudo permanecia em silêncio.
Era evidente que a aldeia também havia passado por tempos de desastre. Estava em ruínas. Aves domésticas e cães ferozes haviam sido levados. Chen Xing invadiu duas casas e não viu ninguém, então só lhe restou buscar água no poço para matar a sede. Ele examinou novamente o rosto de Xiang Shu; após uma noite inteira de tormento, era sorte que ele parecesse estar bem. O prazo de seis shichen* estava próxima; depois que os efeitos do remédio diminuíssem, os meridianos de Xiang Shu deveriam ser capazes de se recuperar. Chen Xing precisava encontrar comida para ele o mais rápido possível, para ajudá-lo a recuperar suas energias… Esse cara está magro demais, pensou Chen Xing, observando seu rosto. Se alimentá-lo bem, provavelmente seria bem mais bonito.
(n/t: *seis shichen = doze horas)
Segundo o registro nas mãos de Zhu Xu, Xiang Shu tinha vinte anos de idade este ano – apenas quatro anos a mais que Chen Xing. No entanto, entre os povos Hu, muitos já tomavam esposas e tinham filhos após completarem treze anos. Naquela idade, as pessoas já poderiam muito bem ter família e estabilidade.
“Protetor, está se sentindo melhor?” Chen Xing, iluminado por trás pela luz do sol, observava atentamente a aparência de Xiang Shu. O rosto dele estava completamente enegrecido pela fumaça. Com seu porte alto e imponente, agora parecia um verdadeiro selvagem. Mas, ao olhar para si mesmo, Chen Xing percebeu que não estava em melhor estado — depois de todo aquele caos e turbulência, os dois pareciam nada mais do que dois mendigos.
Chen Xing pegou mais água e ajudou Xiang Shu a lavar o rosto, esfregando com cuidado. O resultado foi surpreendente. Com o rosto limpo, aqueles olhos sob a barba desalinhada ainda brilhavam claros e vívidos — seu rosto era esculpido, com cílios grossos e escuros, e sobrancelhas afiadas como lâminas. Seus olhos, profundos como o céu noturno, e os lábios antes ocultos pela barba agora exibiam um rubor saudável, graças ao efeito do remédio. Com apenas alguns ajustes, ele certamente se tornaria lendário por sua elegância e beleza incomparável!
O meu Protetor é tão bonito!
Chen Xing não conseguiu conter um elogio entusiasmado: “Que pedaço de jade raro. Aaaaaah!”
Além disso, da cabeça aos pés — exceto por seu *** um detalhe que atendia aos padrões do povo Hu — nada em seus traços faciais ou pele revelava sua origem. Como ele poderia ser um Hu? Basta vesti-lo com um manto de estudioso e uma espada antiga na cintura que ele se transformaria num nobre estudioso belo e refinado. Com sandálias de madeira que parecem flutuar no vento enquanto assobia para a lua, até os literatos de Jiankang teriam que sair de seu caminho!
(n/t: *na raw original está assim, nem preciso falar o que é né?!)
Chen Xing, porém, não tinha exigências quanto à aparência do seu Protetor; para ele, tudo bem, desde que o Protetor soubesse lutar. O caminho à frente era longo e cheio de espinhos. Para alguém como ele, cuja única qualidade era a sorte e que só podia contar com a ajuda divina durante as batalhas, ter um Protetor habilidoso na luta era essencial.
Mas um homem bonito é agradável aos olhos, e é natural ficar de bom humor tendo um por perto. Mas, céus, tomara que o novo Protetor não seja como eu – um travesseiro bordado*, bonito mas inútil.
(n/t: Como um travesseiro bordado = bonito por fora, nada por dentro.)
“Ouvi dizer que o Imperador do Grande Qin, Fu Jian, gosta de homens bonitos.” Chen Xing sentou-se sob a árvore e deixou Xiang Shu usar sua coxa como travesseiro. Enquanto limpava casualmente o pescoço dele, continuou: “Antes, ele até quis manter Murong Chong em seu palácio. Em alguns meses, precisaremos arranjar um jeito de ir para o norte, até Chang’an. Quando chegar a hora, vamos te arrumar direitinho e usar sua beleza para conquistá-lo!”
Os dedos de Xiang Shu estremeceram levemente. Chen Xing levantou-se e foi até o rio lavar o pano. O riacho estava cheio de gelo triturado, e a água era tão fria que o frio penetrava até os ossos.
“… Não importa se você é Hu ou Han. Contanto que não mate pessoas indiscriminadamente, então…”
Antes mesmo de terminar a frase, Chen Xing levou um golpe repentino na nuca e desmaiou.
◈ ◈ ◈
Quinze minutos depois, o rosto de Chen Xing foi banhado com água fria. Ao acordar, percebeu que haviam tirado seu manto exterior — ele usava apenas uma roupa simples sem forro, enrolado numa colcha e amarrado à cadeira em que sentava. Ele havia sido sequestrado por Xiang Shu, levado para fora e colocado no quintal.
Assim que acordou, Chen Xing gritou furioso: “É assim que você trata seu benfeitor?”
Xiang Shu revirava descuidadamente os pertences de Chen Xing, um após o outro. Havia um fogão a carvão ao lado com o fogo aceso e sobre ele fervia uma panela de mingau branco — aparentemente, era o último punhado de arroz encontrado na casa do camponês.
Chen Xing gritou: “Bastardo! Fala alguma coisa!”
Xiang Shu jogava a adaga de Chen Xing de uma mão para a outra, observando-o distraidamente. Mexeu nela por um instante, depois a deixou de lado e pegou a bolsa de remédios, examinando os itens medicinais que não reconhecia.
Chen Xing estava enrolado como um pacote, amarrado com firmeza e incapaz de se mexer.
Xiang Shu foi ao poço buscar um balde de água. Sem cerimônia, tirou a roupa na frente de Chen Xing — afinal, não havia mais nada ali que já não tivesse sido visto. Ele começou a lavar o cabelo e a tomar banho. Depois do banho, ele se virou para a água e usou a adaga de Chen Xing para raspar a barba.
Chen Xing: “Ei! Ei!”
Sua barba caiu. Em menos de uma hora, Xiang Shu já estava arrumado. Quando se virou, apesar de magro a ponto de quase não parecer humano, seu rosto ainda era bonito: olhos profundos e vivos, mandíbula definida e uma beleza sem igual. Sentou-se em frente ao fogão e começou a comer.
O estômago de Chen Xing roncou: “glu——”
Depois de terminar o mingau, Xiang Shu entrou em um quarto, revirou as coisas e encontrou duas peças de roupa sem forro que pertenciam ao antigo dono da casa, então vestiu-as. O dono era um caçador antes de morrer. Xiang Shu pegou suas roupas de caça e amarrou as mangas de sua vestimenta marcial. Quando reapareceu, mesmo com as roupas um pouco apertadas, ainda transmitia um ar levemente imponente.
Chen Xing: “……”
Ele é obviamente um Han, como poderia ser um Hu? Chen Xing realmente se esqueceu de todo o resto por um momento e só pensou nesse ponto.
Xiang Shu pegou o arco e as flechas do caçador, enrolou a adaga, o manto e a bolsa de remédios de Chen Xing. Montou no cavalo e lançou a Chen Xing um olhar gelado e indiferente por cima do ombro.
Chen Xing se debateu, desesperado: “Me solta agora! Se você me deixar amarrado aqui, eu vou morrer!”
Xiang Shu virou o cavalo. Chen Xing ainda gritava de trás: “É porque você não quer ser um Protetor?! Se não quer, então não seja! Quando foi que eu te provoquei? Eu salvei sua vida, até tive chance de te matar e olha só… não fiz isso!”
As costas de Xiang Shu permaneciam voltadas para Chen Xing. Ele havia estimulado o cavalo a um passo lento, mas gradualmente parou ao ouvir aquelas palavras. Ele colocou uma flecha no arco e se virou levemente na direção de Chen Xing.
Chen Xing: “……”
Imediatamente depois, a flecha de Xiang Shu partiu do arco e voou com um whoosh!
Chen Xing fechou os olhos, mas sentiu as cordas ao redor do corpo se soltarem – elas haviam sido cortadas pela flecha.
“Jia!” Xiang Shu gritou.
Montado em seu cavalo, ele virou para a estrada principal e deixou a vila para trás.
“Ei!” Chen Xing, vestindo apenas uma túnica fina, saiu correndo, os dentes cerrados: “Volta aqui! Protetor! Seu desgraçado!”
Essa foi a primeira vez que Chen Xing ouviu a voz de Xiang Shu. Aquele “Jia” foi claro e potente, ecoando pelo ar. Chen Xing não pôde evitar o pensamento: A voz do meu Protetor é incrível… Mas espera, não! Um desgraçado é um desgraçado! Por que meu Protetor fugiu?!
Ao pôr do sol, uma rajada de vento frio passou, e Chen Xing ficou parado no vilarejo com uma expressão vazia, olhando ao redor.
O que eu faço agora? Chen Xing estava completamente atordoado. Seu estômago roncou mais uma vez, emitindo um sonoro “glu——”.
Estou com tanta fome… Xiang Shu deixou um pouco de comida pra trás, por que não como primeiro? Chen Xing estava esfomeado e decidiu devorar algo antes de pensar no resto. Nem sei pra onde aquele desgraçado fugiu! Como raios eu o provoquei?! Enquanto Chen Xing pensava nisso, quase virou a panela inteira de mingau.
◈ ◈ ◈
A noite caiu, e a temperatura despencou abruptamente na terra de Jingzhou. Chen Xing se escondeu na casa abandonada e revirou tudo em busca de algumas roupas para se agasalhar, quando um cachorro surgiu do nada e latindo sem parar para ele. Chen Xing o confortou pacientemente e o alimentou depois de encontrar um pouco de comida. Depois que o cachorro se alimentou, pareceu aceitar gradualmente a realidade de ter sido abandonado por seu dono e acabou passando esta noite fria junto com Chen Xing.
Chen Xing se enrolou no que encontrou para se cobrir na casa abandonada e abraçou o cachorro. Tremendo de frio, resmungou: “Que frio da desgraça! Como isso foi acontecer? O Protetor escolhido pela Lâmpada do Coração é, na verdade, um canalha?”
Chen Xing lamentou no fundo do coração. Naquela noite longa e gélida, não pôde evitar relembrar as expectativas que a realidade havia esmagado cruelmente. Tudo parecia tão simples no dia em que deixara a montanha. Como poderia imaginar que as coisas acabariam desse jeito.
Isso porque, sem exceção, todos os exorcistas da história sempre tiveram um “Protetor” ao seu lado. Sua função era proteger os exorcistas durante os rituais e garantir que não fossem perturbados. O Protetor ao lado do Grande Exorcista que comandava o Quartel-General também tinha um título impressionante — “Deus Marcial”.
Hoje, Chen Xing é o último exorcista restante no mundo — portanto, ele é, por natureza, o “Grande Exorcista”. Quanto ao Deus Marcial, a Lâmpada do Coração designou Xiang Shu como seu Protetor.
Chen Xing havia lido muitos textos antigos e encontrou um fragmento de caligrafia em seda — metade de um ritual de sacrifício escrito pelo Protetor Wen Che para o exorcista Xin Yuanping. Xin Yuanping morreu lutando contra o dragão demoníaco em Sishui, e Wen Che exterminou a criatura.
Após vingar Xin Yuanping, Wen Che se afogou pulando no Rio Si e caiu no esquecimento.
Durante a Dinastia Han, Xie Yiwu — o Grande Exorcista que se tornou governador de Xingzhou — nunca se casou ou teve filhos. Ele foi acompanhado pelo General Hu Bi, cuja reputação abalou o mundo, e também por Wang Yue, o maior espadachim do Jianghu da época, tornando-se uma lenda de sua geração.
Em tempos ainda mais tardios, Zhang Liang, o Marquês Liu, tornou-se discípulo de Huang Shigong e dominava diversas artes. Quanto ao seu Protetor, as opiniões divergiam: alguns diziam ser Xiao He, outros afirmavam que era Han Xin. Porém, quando Zhang Liang fugiu anos depois, fingindo sua própria morte, Han Xin foi traído e executado por Xiao He e Lu Hou. Como os historiadores criticaram severamente Xiao He, a maioria especula que o verdadeiro Protetor era Han Xin. Há também lendas que afirmam que, durante a Dinastia Han, dois Deuses Marciais Protetores — Esquerdo e Direito — foram estabelecidos diante do pedestal do Grande Exorcista.
◈ ◈ ◈
Enquanto estava meio adormecido, Chen Xing mergulhou na memória de quando seu Shifu estava em seu leito de morte:
“Iuppiter faz parte do seu destino; é tudo em que você confiará em sua vida, e é a barreira que você eventualmente terá que superar. Iuppiter tem um ciclo de cem anos e só permanece no mundo humano por vinte anos. Uma vez que vinte anos se passem, ele retornará aos céus.”
Chen Xing seguiu atrás de seu Shifu e disse: “Então minha sorte só vai durar até os vinte anos.”
“Não, muito pelo contrário. Quando chegar a hora, Iuppiter será liberado do seu mapa astral.” Shifu parou e olhou para trás, de dentro do bosque de bordo. Explicou a Chen Xing: “Em que circunstâncias alguém perderia a estrela regente da sua vida? Você já deveria saber a resposta dessa pergunta há muito tempo, então não precisarei explicar mais nada.”
Chen Xing sentiu como se um trovão lhe atingisse.
“Eu… eu não posso viver além dos vinte anos.”
O Shifu respondeu com calma: “O destino é predeterminado pelos céus. Tudo neste mundo tem seu próprio modo de crescer e se propagar, e tudo também tem um lugar onde deve ir no final. Os céus lhe deram este destino. Por que não fazer algo pela Terra Divina durante o tempo limitado que lhe resta?”
“Já que você teve este sonho, faça uma viagem a Xiangyang. Você é o Grande Exorcista.” A voz de Shifu ainda ecoava em seus ouvidos: “Dentro de seu corpo está a única Lâmpada do Coração mágica que ainda funciona neste mundo. Neste mundo desolado, nas noites escuras onde todas as estrelas estão escondidas, você é a semente de luz no mundo humano. Nos próximos quatro anos, você terá que fazer tudo o que puder para recuperar a magia perdida no mundo humano. Descubra por que o qi espiritual do céu e da terra se esgotou. Use sua Lâmpada do Coração para iluminar a vasta extensão ao seu redor.”
“Claro, se quiseres desperdiçar o tempo que te resta até os vinte anos, então vai encontrar o teu ‘Dao’ nessa vida curta. Vai em frente. Vá persegui-lo.”
◈ ◈ ◈
No dia seguinte, Chen Xing saqueou as casas próximas e conseguiu alguns mantimentos. Alimentou o cachorro até ele ficar satisfeito, depois vestiu um casaco floral grande, que provavelmente pertencia à dona da casa, e um par de calças de algodão masculinas que jogou sem cerimônia — pelo menos ajudariam a espantar o frio. Então deixou a vila e partiu — o cavalo, a prata e sua bolsa de remédios haviam sido levados por Xiang Shu, então ele só podia seguir a pé. Ele tinha que ir para Maicheng primeiro e pensar em uma maneira de conseguir algumas despesas de viagem para chegar a Chang’an antes de considerar qualquer outra coisa.
Quando o cachorro viu que Chen Xing estava indo embora, ele o seguiu, abanando o rabo enquanto corria atrás dele.
Quando pensou em Xiang Shu, Chen Xing só… respirou fundo. Xiang Shu não chegava aos pés de um cachorro! Até o cão, com uma única refeição, decidiu segui-lo! Ah, esquece. O Shifu dizia que não devemos levar tudo tão a sério. Se nosso destino estiver mesmo ligado, aquele idiota não vai conseguir fugir para sempre. Mas e se não estiver? Pra que raiva então?
No entanto, menos de meio mês depois de deixar a montanha, sofrer tantos reveses deixou Chen Xing profundamente desanimado. Ele simplesmente não conseguia entender onde havia errado.
Enquanto sua imaginação voava longe, uma carruagem puxada por cavalos — atualmente usada por refugiados — parou abruptamente à beira da estrada.
“Ei, você! Sobe aqui!” Alguém gritou para ele. “De onde você é? A madame mandou te dar carona!”
Chen Xing: “?”
De manhã cedo, havia muitas pessoas que traziam suas famílias enquanto viajavam para o sul, em direção à Maicheng. Entre elas, não faltavam famílias abastadas que haviam escapado do norte. Chen Xing vestia um casaco grosso com estampa floral e até tinha um cachorro seguindo-o, então ele realmente parecia um filho estúpido de uma família de proprietários de terras. Além disso, ele era naturalmente bonito, então as pessoas mais ou menos não suportavam vê-lo sofrer, e foi por isso que um comboio diminuiu a velocidade e o pegou junto com seu cachorro no caminho.
Era uma família de estudiosos que fugiu de Fancheng. O patriarca, já na casa dos cinquenta, levava consigo a esposa e a filha de dez anos. Quando a matriarca da família, acompanhada de suas criadas, soube da queda de Xiangyang, partiu apressadamente para o sul, planejando passar por Maicheng antes de buscar refúgio com parentes em Changsha. O patriarca, agora envelhecido, fugiu em pânico durante a noite com a família. Ao tomar conhecimento dos horrores sofridos pelo povo Han — massacres indiscriminados —, sentiu uma dor tão profunda que mal conseguia respirar. Estendido na carruagem, imóvel, mantinha os olhos rigidamente fechados, à beira da morte.
“O que aconteceu?” Chen Xing agradeceu primeiro à matriarca pela ajuda e então explicou brevemente suas origens, dizendo ser um estudioso do sul. Observando o patriarca à beira da morte, tomou-lhe o pulso. Ao identificar a condição, perguntou: “Ele está doente? Vocês têm agulhas? Preciso de uma. Depois de uma sessão de moxabustão, ele ficará bem.”
A matriarca rapidamente ordenou que trouxessem uma agulha de bordar. Chen Xing a esterilizou no fogo e então a aplicou no idoso. Com efeito, após sete agulhadas, o homem de meia-idade expeliu um bocado de sangue coagulado e, aos poucos, recobrou a consciência – para então romper em pranto.
“Um médico milagroso!”
“Médico milagroso——!”
Todos se apressaram para agradecer a Chen Xing por salvar a vida de seu mestre. Chen Xing, modestamente, acenou com a mão como quem diz “não foi nada” e assim seguiu para Maicheng. No caminho, ele contou brevemente como havia sido roubado por Xiang Shu, e todos suspiraram em lamento.
“Você não encontrou um guarda-costas”, disse a madame. “Encontrou um ancestral.”
“Os costumes públicos decaem a cada dia. As pessoas hoje em dia são todas escórias degeneradas, não é mesmo?” A velha senhora completou, balançando a cabeça.
“Pois é, né?” Chen Xing sentiu-se um pouco melhor depois de desabafar. Esses estranhos haviam se unido por acaso e se separaram em Maicheng. A família lhe deu quarenta taéis de prata como agradecimento e um frango assado extra.
Chen Xing segurou os pesados lingotes de prata — cerca de três jin — e despediu-se deles. Agora ele tinha dinheiro novamente. Primeiro, trocar por outro conjunto de roupas, depois trocar a prata por ouro. Caso contrário, seria muito incômodo carregar todo aquele peso nas calças. Além do desconforto, andar com tanta prata facilmente o tornaria alvo de ladrões.
“No dia em que minha mãe me deu à luz”, Chen Xing disse ao seu cachorro, “dizem que Iuppiter desceu à Terra. Minha sorte tem sido incrível desde que nasci. Olha só, agora temos um frango assado para comer, né?”
Chen Xing dividiu o frango assado ao meio e deu uma parte para o cachorro. Primeiro, foi procurar um banho público para relaxar, depois dirigiu-se a uma loja de roupas. Escolheu com cuidado e comprou um traje novo — e, com a mudança, sua aparência aristocrática ressurgiu instantaneamente. Até comprou uma pequena jaqueta de vison para o cachorro vestir antes de sair desfilando rumo ao banco.
Embora Maicheng fosse uma cidade pequena, ela tinha tudo o que era essencial. Como o maior centro de distribuição de mercadorias de Jingzhou, quando Xiangyang foi sitiada um ano atrás, os comerciantes que passavam por ali acabaram fazendo negócios no local. O exército Jin não conseguira salvar Xiangyang, mas ainda conseguiam manter Maicheng relativamente segura. A notícia da queda de Xiangyang chegou ao local trazida pelos refugiados que fugiram para o sul, e, da noite para o dia, as ruas ficaram lotadas de desabrigados e comerciantes.
As pousadas, casas de chá e restaurantes da cidade estavam abarrotados de ricos que rumavam para o sul. Um burburinho de discussões fervorosas tomava conta do lugar — alguns estavam dispostos a doar dinheiro e até oferecer trabalho braçal para ajudar o exército a contra-atacar, enquanto outros achavam que Maicheng ainda não era segura o suficiente e que o melhor era partir para o sul o quanto antes. Todos viviam em constante tensão.
Primeiro, ir ao banco trocar o dinheiro; depois, ao escritório governamental para obter um documento de autorização de viagem. Só assim seria possível seguir sem problemas para o norte, até Chang’an. Como os reinos Qin e Jin estavam em guerra, o processo de liberação precisava ser feito com extrema cautela.
◈ ◈ ◈
Chen Xing entrou no banco carregando um pacote de prata que pesava três jin. O estabelecimento já estava arrumado e pronto para fugir. Mal havia adentrado o salão principal quando percebeu um silêncio absoluto no local — e uma atmosfera estranha, inexplicável.
“Senhor lojista, eu gostaria de trocar…”, Chen Xing começou a dizer, mas parou abruptamente.
As bocas de todos os atendentes, do gerente e dos capangas contratados do banco estavam escancaradas; seus pulsos e tornozelos estavam amarrados por barras de ferro arrancadas das janelas do banco. Assim que ouviram Chen Xing entrar, todos se viraram e olharam para ele com a boca aberta — seus queixos haviam sido deslocados e eles tinham uma estranha semelhança com gansos carrancudos.
Um homem encostou-se calmamente na janela do caixa. Com o corpo virado para o lado, a mão esquerda apoiada no balcão e vestindo um conjunto de roupas de caçador — era Xiang Shu!
Xiang Shu bateu no balcão com o dedo, pressionando o gerente a entregar o dinheiro rapidamente. O homem tremia, e com a boca ainda aberta devido ao queixo deslocado, usou um ábaco para alinhar uma fileira de lingotes de ouro para Xiang Shu. Embrulhou-os em um pacote pequeno e, com um olhar desesperado, sinalizou para Chen Xing: “Fuja!”
Xiang Shu ouviu o barulho, virou levemente a cabeça e trocou olhares com Chen Xing.
Uma patrulha de soldados Jin passou do lado de fora da porta. Chen Xing, decisivamente, rugiu:
“SOCORRO! ALGUÉM ESTÁ ROUBANDO O BANCO ——!”
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