O Primeiro Mandamento - Capítulo 20
O som de algo caindo e quebrando ecoou alto no ar. Alexei, que estava sentado na mesa perto do forno, trabalhando em seu laptop, virou a cabeça. No chão, estava uma xícara de café quebrada de forma desastrosa, espalhada em pedaços. Ao seguir o rastro do líquido marrom derramado, ele avistou um par de sapatos de cozinha pretos. T-Mac costumava se gabar de suas solas antiderrapantes e de sua durabilidade, que não cediam nem mesmo quando cobertas de farinha. Alexei levantou lentamente o olhar. Lá estava T-Mac olhando para ele com uma expressão desconcertada no rosto.
— Ah… desculpa.
Do nada, T-Mac pediu desculpas. Não aos funcionários de meio período que seriam solicitados para limpar a bagunça, mas a Alexei. Alexei ergueu as sobrancelhas e olhou para T-mac com estranheza. Algo estava definitivamente errado T-mac, que era sempre ágil e eficiente dentro do próprio estabelecimento, estava agindo de maneira esquisita desde a manhã. Desde o momento em que Alexei o encontrou, ele vinha contando piadas exageradas e dizendo coisas estranhas, e agora, ao vê-lo, até deixou cair uma xícara de café.
— Ei.
Alexei chamou por ele calmamente então o homem começou a soluçar de repente.
— O quê, o quê?
— É melhor falar logo.
Com um comportamento tão suspeito, era óbvio que ele tinha feito alguma coisa. Alexei não sabia exatamente o quê, mas com certeza era algo que provavelmente faria Yuri brigar com ele novamente ou, talvez, algo como da última vez, quando ele arranhou o carro de Alexei.
Quando ele deu o aviso com um tom ameaçador, os dois funcionários que estavam indo limpar o chão hesitaram e se afastaram discretamente. Na mesma hora, ouviu-se o som da campainha da porta se abrindo, sinalizando a chegada de um cliente. Os funcionários correram para o balcão mais rápido do que qualquer um. Enquanto os observava, Alexei voltou a advertir T-mac.
— Vou contar até cinco.
T-mac piscou os olhos ao ouvir a voz lânguida, porém ameaçadora. Alexei se levantou e empurrou a cadeira para trás, o homem deu um passo para trás quando as pernas da cadeira rasparam no chão, fazendo um som estranho.
— Es… espera!
Ignorando o apelo desesperado, Alexei parou diante dele.
— Um, dois, cinco.
— Que fim levaram os outros números? Isso é jogo sujo!
— Taylor McDonald.
Quando Alexei pronunciou seu nome com firmeza, T-mac fechou a boca. Se fosse uma ou duas vezes, ele até poderia relevar, mas desde a manhã até agora, o homem vinha irritando-o sem parar, e a paciência tinha um limite. T-mac olhou ao redor, nervoso, antes de suspirar profundamente, então, lançando olhares cautelosos para Alexei, perguntou:
— Você… por acaso viu?
— Vi o quê?
O olhar de T-mac desviou-se para o notebook. Alexei rapidamente bloqueou sua visão e insistiu novamente:
— Fale de uma vez.
— Ah, isso está me deixando louco. Yuri disse que não era para perguntar nada.
— Agora que você começou, acho melhor dizer a verdade.
Com Alexei claramente irritado, T-mac respondeu rapidamente:
— Tá bom.
— O que foi?
— É que… a matéria…
Enquanto a expressão de Alexei endurecia, T-mac finalmente falou corretamente.
— Eu queria saber se você viu a matéria. Ele… era o assunto da matéria.
Ah.
Todo o discurso que Alexey tinha preparado para repreender T-mac se dissipou num instante. Apenas pela hesitação e a forma vaga de mencionar aquilo, ele já sabia do que se tratava. O olhar levemente franzido de Alexei voltou lentamente ao neutro, e sua expressão se fechou. Ele lutou contra os próprios sentimentos, que insistiam em reagir àquela lembrança.
‘Por que você está agindo assim, Alexei? Supere isso. No fim das contas, ele é alguém que já está morto dentro de você.’
Já fazia dois anos desde que tinha deixado Saratov. Durante todo esse tempo, Valery nunca o procurou. Claro, mesmo que quisesse, talvez não pudesse. Mas, sempre que Alexei se lembrava de como Valery priorizou Ryan e do momento em que ele virou as costas para partir, sentia apenas um vazio misturado à ironia amarga da situação.
Alexey sabia melhor do que ninguém que Valery nunca tentou procurá-lo. E, afinal, ele também não queria um Valery que não o colocava em primeiro lugar. Para ele, o garoto de olhos verdes sempre foi o seu número um. Só assim eles poderiam ter estado juntos.
O que Alexei desejava de Valery não era sua devoção, mas o amor que o estimasse e aceitasse mais do que a qualquer outra pessoa. Ele ainda se lembrava vividamente, como se fosse ontem, da forma como Valery virou as costas para cuidar de Ryan, sem nem olhar para trás, mesmo quando ele tentou segurá-lo. Aquele rosto vazio que não lhe deu nenhuma atenção. Esse Valery, Alexei não queria conhecer. E nem precisava.
Pensar nisso provocou uma risada amarga em Alexei. ‘De que adianta pensar nisso? Não é algo que vá acontecer.’ Fingindo que tinha superado, mesmo que não fosse verdade, ele respondeu friamente a T-mac:
— Não vi. Não sei do que se trata, mas ele deve estar bem… Não me interessa.
O rosto de Alexei perdeu o interesse, fazendo com que as preocupações de T-mac parecessem sem sentido.
—É só isso?
— Ah? É… é isso mesmo
Depois de refletir por um instante, ele balançou a cabeça como se tivesse chegado a uma conclusão.
— Certo, você está indo bem. É o melhor a se fazer. Afinal, ele agora é um completo estranho. Ele não lhe deu nada e só lhe causou todo tipo de problema, gente assim é melhor apagar da sua vida.
Qualquer um que ouvisse aquilo poderia pensar que eles tinham namorado e terminado, mas não era nada disso. Era só uma família que se separou… Ou melhor, nem família eram, de verdade.
‘Então, o que éramos?’
Ele se pegou pensando nessa pergunta de novo, algo que frequentemente o atormentava desde que Valery partiu. A relação deles, enterrada junto com a verdade, às vezes surgia como um espectro na mente de Alexei. Eles não tinham laços de sangue, os pais dele haviam morrido inutilmente tentando proteger aquela família, e, no fundo, Alexei tinha vivido sem identidade própria, apenas para criar e proteger o filho das pessoas que ele, em teoria, deveria odiar. Ele abriu mão de tudo: da vingança, da raiva, de qualquer emoção, focando apenas em sobreviver.
Era natural que, depois de Valery partir, ele não tivesse mais nada. Mas, surpreendentemente, havia algo que restou. Ele tinha T-mac, com seu jeito desajeitado, que fazia a vida parecer menos árida, e também Vasily, o amigo do seu pai que os ajudou a chegar ao Canadá, além de Yuri, filho de Vasily que agora é seu amigo próximo.
Sem grandes ambições, apenas seguindo o fluxo, Alexei e os outros acabaram no Canadá. Quando começava a se sentir oprimido pela ausência de Valery — que era quem havia sugerido a mudança —, T-mac encontrava uma maneira de preencher o vazio. Com sua habilidade de fazer contatos e sua sociabilidade natural, ele sempre arranjava alguma coisa para manter todos ocupados. Foi ideia dele irem para uma grande cidade, mesmo que não combinasse muito com eles. Após analisarem a Colúmbia Britânica, decidiram-se por uma área nos arredores de Vancouver, a proximidade do mar e o clima semelhante ao da Europa criava uma atmosfera viva e única.
Graças a Vasily, que já vivia no Canadá, o processo de atravessar a fronteira e criar identidades novas levou cerca de um ano. Embora as acusações de assassinato tivessem desaparecido, os registros de crimes relacionados a drogas ainda impediam Alexei e Yuri de voltar para Saratov. T-mac, no entanto, conseguia voltar ocasionalmente, recuperando algum dinheiro que deveria ter sido deles. Não era uma fortuna, mas foi suficiente para abrir um pequeno negócio. Com isso, T-mac realizou seu sonho de vida: abrir sua própria filial da Little Caesar’s Pizza.
Por ser uma atividade com a qual tinha alguma familiaridade, Alexei ajudou T-mac no negócio. Ele não queria viver, mas também não queria se esforçar para acabar com a própria vida, então, apenas deixou o tempo passar. Assim, dois anos se foram.
Viver sem Valery parecia impossível, mas Alexei seguiu em frente. E, às vezes, até sentia que havia momentos bons e agradáveis.
Parece, então, que Valery não era o único para Alexey. Ele continuou vivo mesmo sem Valery e seguia em frente graças às pessoas que estavam ao seu lado. Mas, nesse caso, o que Lerusha significava para ele? Alexey pensava que ele era a razão de sua vida, sua única coisa preciosa, mas, no fundo, percebeu que isso não era verdade.
‘Que tipo de ser você é para mim, Lerusha?’
Alexey sempre considerou Valery sua única família. Contudo, com o passar dos anos sem ele, percebeu que começou a enxergar aqueles ao seu lado como algo semelhante a uma família. Mas, se perguntassem se ele era capaz de fazer por essas pessoas o mesmo que fez por Valery, a resposta seria claramente não. Valery nunca o irritou como T-mac às vezes fazia, e, não importa o que acontecesse, ele sempre o achava adorável. Mesmo agora, tratando seu irmão como se estivesse morto e se recusando a mencioná-lo, Alexey ainda se pegava pensando nele sempre que via algo bonito.
De vez em quando, ele parava no meio do caminho, fixando o olhar em um homem alto e loiro, como se esperasse reconhecê-lo. Outras vezes, ao passar pelo centro de Vancouver, ficava por um bom tempo diante de cartazes de apresentações de balé.
‘Valery provavelmente teria amado este lugar, aqui tem o mar e uma energia vibrante que Saratov nunca teve, cheia de coisas que ele nunca pôde fazer lá.’
A grande cidade era diferente de muitas maneiras. Havia metrôs, inúmeras lojas e uma atmosfera completamente distinta. Ao contrário do centro de Saratov, que era palco constante de tiroteios, o centro de Vancouver era verdadeiramente um coração comercial, repleto de vida. Havia comidas que ele nunca tinha visto e uma diversidade de pessoas que fazia Saratov parecer insignificante. Passeando por essa nova realidade, Alexey percebeu que não precisava mais viver uma vida de tragédias. Ele podia ser alguém normal, uma pessoa comum — exatamente o tipo de pessoa que Valery sempre desejou que ele fosse.
Mas Valery não estava mais lá para apreciar isso.
Mesmo pensando frequentemente nele, Alexei nunca procurava notícias. Embora dissesse a si mesmo que havia deixado tudo para trás, no fundo, tinha medo de, ao ver Valery novamente, não conseguir evitar o apego e a obsessão.
‘Ele deve estar vivendo bem. Escolheu Ryan, então provavelmente tem tudo o que precisa, deve ter formado uma família com alguém que nasceu ômega, diferente de mim, que se tornou um ômega por causa de razões distorcidas, e alcançado o sucesso que sempre quis.’
De vez em quando, Alexei ouvia T-mac mencionar a Yuri alguma notícia sobre Valery. Parecia que ele havia se tornado uma figura bem conhecida em algum lugar. Alexey, no entanto, não queria confirmar isso, para ele, o passado que compartilhou com o garoto não passava de uma sombra insignificante no brilho da nova vida do outro. Por isso, evitava qualquer meio que pudesse trazer Valery de volta à sua atenção. Não navegava pelas redes sociais nem participava de comunidades.
Ao invés disso, dedicava-se ao trabalho e, às vezes, à leitura. Apesar de ser fluente em russo, seu conhecimento de inglês era surpreendentemente limitado, especialmente em gramática. Assim, acabou aprendendo gramática com os livros que Yuri lia, mesmo nessa idade.
Ele levava uma vida assim. Sem o peso que costumava carregar, notou que, ao acordar todas as manhãs, o fardo e a tristeza que antes esmagavam sua alma tinham diminuído. A sensação de vazio ainda permanecia no peito, mas não era algo que o levaria à morte. Instalado em uma rotina monótona e repetitiva, ele apenas seguia o fluxo. Não era feliz, mas também não era infeliz. É, podia viver com isso. E isso já era o suficiente.
— Se já terminou, vou voltar ao trabalho.
Com essas palavras de Alexei, T-mac acenou rapidamente com a cabeça. Ele precisava de instruções claras, já que Alexey estaria em consulta com o Dr. Altor e descansando até o dia seguinte, deixando T-mac responsável por manter tudo em ordem nesses dois dias.
— Terminei de verificar o estoque e encomendei os suprimentos. A matriz avisou que, nesta semana, os pedidos vão chegar amanhã de manhã, e não na quarta. Então, peça ao gerente para abastecer o depósito cedo. Corrigi o erro na função do relatório de vendas de ontem… Ah, e pelo cálculo rápido que fiz, o faturamento subiu em relação ao mês passado.
Acostumado a lidar com números desde os tempos em que trabalhava para Igor, Alexei assumia o controle financeiro do negócio. No início, ele teve dificuldade para entender o sistema tributário canadense, que era bem diferente do americano, especialmente em relação a impostos e reembolsos fiscais. Com o tempo, no entanto, ele se adaptou. Ainda assim, os impostos eram absurdamente altos. Em BC, a taxa de imposto sobre a renda chegava a quase 40%, o que, a princípio, fez T-mac reclamar sem parar, comparando a situação com os tempos em que trabalhavam para Igor. Mas, quando viu os valores dos reembolsos, sua opinião começou a mudar.
— Ah, é? Valeu.
— A matriz enviou instruções sobre o novo cardápio. Peça ao pessoal para atualizar os menus e esgotar o estoque anterior. Estou indo.
— Tá certo, até mais. Vai encontrar Yuri?
Alexei apenas assentiu com a cabeça. Diferente dele, Yuri trabalhava com Vasily em uma oficina mecânica. Era um lugar grande o suficiente para que Yuri não precisasse trabalhar diretamente como mecânico, mas ele fazia questão de colocar as mãos na graxa. Curiosamente, a maioria dos clientes da oficina era composta por ômegas, o que dava a Alexei motivos para provocá-lo sempre que presenciava essas cenas.
Saindo da loja, ele entrou no carro. Diferente de Saratov, Vancouver tinha uma mistura estranha de primavera e verão que se prolongava, e o inverno não era tão rigoroso. Embora o clima fosse frequentemente chuvoso e sombrio durante o inverno, por conta da ausência de neve, ele preferia assim. A umidade fria no ar ainda era melhor do que os invernos congelantes de Saratov.
No momento em que ia dar partida no carro, ele abaixou os olhos para o celular em sua mão. Apesar de tentar ignorar, algo na reação de T-mac o incomodou. Se havia uma notícia envolvendo Valery, só podia ser algo muito bom ou muito ruim. E qualquer que fosse o caso, era algo que Alexei provavelmente não gostaria de saber, o que justificava o comportamento hesitante de T-mac.
‘Será que é sobre um casamento?’
Valery ainda era muito jovem para tomar uma decisão assim, pensou Alexei. Mas, independente do motivo, se fosse esse o tipo de notícia, T-mac não teria por que agir com tanta cautela. Um casamento seria motivo de celebração, afinal. Valery era apenas o irmão mais novo que Alexei amava. Não havia razão para que um irmão mais velho se sentisse incomodado com algo assim. Os sentimentos confusos que teve no passado, enquanto fingia ser um ômega para afastar Valery de Ryan, já não importavam. Valery nunca foi e nunca será seu amante. Alexei nunca o viu dessa forma.
‘Além disso… Eu já não sou mais um ômega.’
Quando ele e T-mac fugiram de Saratov, também resgataram Altor. Foi um resgate quase forçado, mas, considerando que a polícia estava rastreando todos os associados de Igor, Altor acabou aceitando a situação e decidiu acompanhá-los. Nenhum deles tinha laços que os prendessem a Saratov, então agir rapidamente foi possível.
Depois que se estabeleceram em Vancouver, Altor conseguiu produzir o remédio que Alexei havia pedido. Talvez por um senso de culpa, Altor até manifestou a intenção de oferecer a mesma medicação a outras vítimas das experiências de Ivan. Sendo um médico habilidoso, mesmo com uma identidade falsa, ele começou a atender pessoas em situações vulneráveis. Atendia casos relacionados à genética, algo que não era coberto pelo sistema de saúde pública, cobrando valores baixos. De tempos em tempos, ele também aproveitava para verificar o estado de Alexei.
Resumindo, Alexei conseguiu recuperar sua condição original, mas de forma incompleta. Altor explicou que, quando ele estivesse diante da pessoa com quem tinha um vínculo marcado, seu corpo retornaria a um estado indefinido, semelhante ao que era antes. Ele não poderia engravidar, nem produziria feromônios característicos de um ômega. Era uma condição intermediária, que não se encaixava totalmente em nenhum dos padrões conhecidos.
“Você formou um vínculo, Alexey.”
As palavras sérias de Altor voltaram à mente de Alexei, trazendo uma avalanche de pensamentos. Com um suspiro, ele colocou o celular de lado, tentando acalmar a confusão interna. Para questões que não podia resolver sozinho, parecia sensato consultar Altor diretamente, sem tomar mais do tempo dele do que o necessário.
***
Ele chegou à clínica de Altor, localizada na região de Richmond. O lugar, que costumava ser movimentado, estava tranquilo por ser horário de almoço. Um ômega, que trabalhava como assistente de Altor, cumprimentou Alexei com um aceno de cabeça. Ele respondeu rapidamente e, sem bater, abriu a porta da sala de descanso de Altor.
— Que timing perfeito.
Altor, que estava prestes a morder um sanduíche, soltou um suspiro frustrado.
— Eu vim até cedo.
— Que consideração, hein.
Apesar do tom irônico, Altor colocou o sanduíche de lado e começou a preparar os instrumentos para a consulta. Enquanto ele pegava algo parecido com um kit simples, Alexei já arregaçou a manga. Ele não era apenas um paciente, mas também um objeto de estudo para Altor, que analisava a progressão de sua mutação e investigava, com interesse especial, os efeitos do vínculo em sua condição única.
—Você está tão saudável que isso chega a ser irritante. Quem olhar para você, ou até você mesmo, só vai ver um alfa.
— Eu sei.
— Por isso, desde que você evite a pessoa com quem tem o vínculo, pode viver como um alfa normal. O problema é que, enquanto o vínculo durar, será difícil passar por um rut ou um ciclo sem o parceiro, e coisas como o knotting (nó) também não acontecem. Mas, já que vocês estão separados há dois anos, é só aguentar mais um pouco que o vínculo vai se romper.”
— Quanto tempo mais?
— Entre seis meses e um ano.
Em Saratov, o conceito de vínculo era raro e pouco compreendido. Se não tivesse ouvido isso de Altor, Alexei provavelmente jamais saberia, mesmo que vivesse até o fim da vida. Basicamente, o vínculo era algo desnecessário, um elo físico e espiritual que aprisionava os envolvidos. Embora em casamentos isso às vezes acontecesse sem que as partes percebessem, ninguém próximo a ele jamais havia passado por algo assim.
Como Altor explicou antes, durante o vínculo, não é possível encontrar satisfação, seja física ou emocional, com outra pessoa. Os feromônios do parceiro são os únicos que conseguem acalmar a mente e o corpo. Sem esse contato, surgem vários efeitos colaterais, que variam para cada indivíduo. No caso de Alexei, os sintomas eram predominantemente físicos. Ele enfrentava crises imprevisíveis, semelhantes a febres intensas e debilitantes, como se tivesse uma forte gripe.
O curioso é que a solução para esses sintomas era extremamente simples: bastava sentir os feromônios do parceiro de perto. Assim, como se tivesse tomado um antitérmico potente, todos os sintomas desapareciam quase que instantaneamente.
—Então tudo vai melhorar, certo?
Alexei perguntou novamente. Sempre que uma dor intermitente surgia, algo que parecia vir da mente como uma dor fantasma, ele achava difícil suportar, mesmo tentando manter uma postura indiferente. Havia apenas uma maneira de aguentar. Ele enterrava o rosto no casaco de Valery, que há muito tempo não tinha mais seu cheiro, e permanecia deitado em silêncio. Assim, a febre e a dor intensas acabavam por desaparecer. Nenhum dos remédios que Yuri comprava surtia efeito nesse momento.
Pensar em alguém que já havia partido e mergulhar inutilmente na saudade era algo que ele realmente não queria fazer. Mas, sempre que a dor voltava, ele não conseguia evitar, o que às vezes o deixava com raiva. Isso porque, nesses momentos, Alexei acabava se entregando a arrependimentos que não combinavam com ele.
‘Se eu tivesse dito a verdade, você teria ficado ao meu lado? Ou será que nunca deveria ter te salvado?’
Esses pensamentos inúteis se repetiam loucamente em sua mente. No entanto, a conclusão era sempre a mesma. Por mais que voltasse no tempo centenas de vezes, Alexei sabia que faria qualquer coisa para salvar Valery. Era simplesmente a natureza dele, alguém que havia nascido para ser assim. Desde o momento em que trouxe Valery para sua vida, o destino estava traçado.
—…Sim. Vai melhorar.
Após um breve silêncio, Altor respondeu dessa forma. Como se isso fosse suficiente, Alexei deixou o valor da consulta ao lado do sanduíche. O toque do dinheiro em suas mãos ainda parecia estranho. Diferentemente dos Estados Unidos, as notas de plástico brilhante do Canadá, com cores e formatos incomuns, pareciam sempre esquisitas para ele. Não precisava pagar tanto, mas ele sempre deixava duas notas de $100, amarelas. Sua vida sem Valery era tão vazia de gastos que isso não representava nenhum peso.
— Eu vou indo. Termine sua refeição.
Ele sempre substituía agradecimentos com comentários assim. Empurrando a cadeira para trás com suas longas pernas, Alexei se levantou. Enquanto ele saía, Altor acrescentou uma frase sem aviso, como uma despedida:
— Se é realmente o que você quer.
Alexei franziu ligeiramente as sobrancelhas diante da frase inesperada. Altor apenas balançou a cabeça, como se não fosse nada demais.
—Ignore isso. De qualquer forma, vai melhorar. Não é tarde, né? Acho que Yuri deve estar esperando por você.
Altor, sabendo que Alexei sempre almoçava com Yuri, apontou para o relógio na parede. Alexei lançou um olhar firme para Altor, mas decidiu deixar para lá, não queria prolongar a conversa.
O lugar onde Yuri e ele moravam ficava no lado oposto de Richmond, em North Vancouver. Era uma área típica do Canadá, com muitos parques, montanhas e natureza preservada. Vasily, pai de Yuri, gostava de passear pelas montanhas da região com seu filho. Yuri, aparentemente, também não se importava em cuidar do pai idoso, e estava visivelmente mais tranquilo do que quando viviam em Saratov.
Ao estacionar na frente da casa de Yuri, que ficava a apenas cinco minutos da oficina, Alexei viu o homem já do lado de fora, esperando no jardim. Carregando uma sacola de Timbits e um café como gesto de desculpas, Alexei foi até ele. Yuri esboçou um pequeno sorriso torto.
—Trouxe especialmente um *double-double para você.
(*Um café mais doce e mais cremoso.)
Com essas palavras, Alexei entregou o café a Yuri.
—Você tem um gosto peculiar.
Yuri, que preferia tomar espresso em vez de café com creme e açúcar como o double-double, só aceitava esse tipo de café quando Alexei comprava.
— É que a sua expressão quando toma algo doce é engraçada. Pena que cheguei tarde e perdi o show, hoje ninguém te fez uma declaração?
Alexei passou por Yuri, tirou as chaves do bolso e abriu a porta. Eles moravam perto de Vasily, e cada um ocupava um andar diferente da casa. Inicialmente, foi por falta de opção. Mais tarde, Alexei tentou sair, preocupado que Yuri pudesse dar importância demais à proximidade deles, mas Yuri insistiu para que ele ficasse. Havia algo em seu comportamento que lembrava Alexei de si mesmo, então ele cedeu.
— Não é divertido.
—Por quê? Tem tantas ômegas bonitas por aí.
Assim que entrou, Alexei deixou as chaves sobre a mesa da entrada e foi até a cozinha. Lá, viu que a comida já estava pronta e parecia ter sido feita por Yuri.
— Não muito.
Yuri respondeu, desviando o olhar, e entrou na cozinha, abrindo a porta da geladeira. Dentro, havia várias bebidas ajustadas ao gosto de Alexei.
— Suco de laranja?
— Com vodka.
— Ainda é hora do almoço.
Yuri escolheu outro suco.
— Toranja?
Alexei hesitou ao tentar responder, dizendo “ah”, mas parou. Era o suco que Valery costumava beber, e isso fez com que se sentisse estranho.
— …Vou tomar só uma cerveja.
— Alyosha, você tem bebido demais ultimamente.
Yuri então pegou uma garrafa de água e a serviu. Alexei, que estava olhando para a garrafa de água com o filtro instalado, foi primeiro até seu assento e sentou-se. Talvez por ter reduzido atividades prejudiciais, estava bebendo um pouco mais do que antes. Olhando para a quantidade de cigarros que estava fumando, não parecia que ele estava tentando arruinar o corpo, mas se sentia melhor depois de beber.
— O que há de errado em tomar umas três ou quatro taças por dia? Vasily sempre bebe uma garrafa de vinho. Dizem que uma quantidade moderada faz bem.
Yuri ficou quieto, não respondendo à fala de Alexei. Colocou um copo de água na frente dele e se sentou na cadeira em frente. Alexei também permaneceu em silêncio. Estava cansado depois de dirigir continuamente. Parecia que seu corpo estava reagindo novamente à medida que os calafrios aumentavam. O ciclo de beber mais rápido coincidiu com a diminuição do ciclo dos efeitos colaterais, e Yuri sabia disso.
— Vou comer agora. Amanhã, eu vou pedir comida delivery. Não se preocupe em preparar, só coma isso. Está difícil fazer tudo isso, né?
Enquanto Alexei pegava o garfo, Yuri perguntou:
— O que o Altor disse?
Como conheciam a rotina um do outro, era natural que Yuri soubesse sobre a consulta com Alto.
— Vai ficar tudo bem.
Se eu quiser.
Enquanto comia uma garfada de salada, Alexei engoliu também as palavras que vieram a seguir. Yuri, que o observava atentamente enquanto ele comia distraidamente, logo começou a se alimentar também. Uma silenciosa tensão pairava entre eles. Era como se ambos estivessem escondendo o que realmente queriam dizer. Alexei, no entanto, não disse nada.
Hoje, a falta de apetite estava forte demais, e ele acabou deixando o garfo de lado depois de apenas algumas mordidas. A dor interna que subia de dentro era difícil de suportar, muito mais do que as dificuldades externas. Inusitadamente, a sensação ruim subiu mais rápido hoje. Ele fechou os olhos com a sensação de desconforto. Pensamentos sobre Valery, por causa das palavras de T-mac, não saíam de sua cabeça.
— Vou comer mais tarde.
Alexei estendeu a mão e pegou um frasco de remédio que estava no canto da mesa. Era um medicamento que Altor havia dado, e que às vezes ajudava quando ele não estava se sentindo bem. Lembrava que o remédio atuava de alguma forma nos feromônios, mas como não entendeu bem a explicação, ficou difícil de explicar.
— Você tem se sentindo assim muitas vezes ultimamente.
Yuri também largou o garfo e falou. Alexei assentiu com a cabeça.
— Eu sei.
Ah, o frasco estava vazio.
Ele se esqueceu de pegar mais quando foi buscar os remédios hoje. Com pensamentos desnecessários, Alexei soltou um suspiro breve e pegou um cigarro. Era um maço de cigarros que ele tinha comprado há algum tempo e que não fumou ultimamente. ‘O cheiro deve ter se perdido um pouco.’ Cigarros ruins eram piores do que comida sem gosto. Talvez fosse hora de comprar um novo maço.
— Pode me usar, se quiser.
Yuri disse de repente. Alexei piscou surpreso. Yuri insistiu.
(Yuri! Pelo amor! Tenha um pouquinho de amor próprio 😔)
— Você e eu estamos a mais tempo juntos do que o tempo que você passou com aquele cara. Se o problema for o feromônio, me use. Não espero mais do que isso. Só… Quero que você se sinta bem.
A voz calma de Yuri realmente magoou Alexei. Mesmo para Alexei, que estava longe de ser uma boa pessoa, Yuri o fazia se sentir culpado.
— Não.
°
°
Continua…