Deseje-me se puder - Capítulo 86
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— Você não tem noção do que é senso comum?”
Assim que chegaram a um espaço mais isolado, Dane soltou Grayson como se estivesse jogando fora algo incômodo. Ele havia sido puxado sem resistir, mas deu um passo em falso antes de se equilibrar.
Dane esperou até que ele estivesse firme antes de continuar. Porém, no instante em que abriu a boca para falar, sua expressão se contorceu de irritação.
Grayson estava olhando para ele com um sorriso radiante no rosto, as bochechas levemente coradas.
‘Que merda se passa na cabeça desse desgraçado?’
Dane amaldiçoou mentalmente enquanto falava, e Grayson piscou, hesitante. Levou uns dois ou três segundos para ele responder.
— Hã?
‘Uma palavra. Só isso.’
Dane respirou fundo e despejou tudo de uma vez.
— Se alguém está pendurado na porra de um prédio, não importa o motivo, temos que resgatar. Ninguém, absolutamente ninguém, fala do jeito que você falou. Pensar, até pode. Mas dizer em voz alta? Isso é outra coisa.
Ele achou que estava explicando de forma bem didática. Mas a resposta veio de um jeito completamente inesperado.
Ele imaginou que Grayson responderia com um “Por quê?” ou “E daí?”, e já estava se preparando para rebater.
Em vez disso, Grayson soltou um longo — Ah…— e seu rosto foi se fechando aos poucos. O sorriso sumiu, os ombros caíram, e a expressão se tornou nitidamente desapontada.
Dane franziu a testa.
— Que merda de reação é essa?
Com a voz meio desanimada, Grayson murmurou com os ombros ainda caídos:
— Tudo isso… Só por isso.
— Como é que é?
Dane olhou para ele, incrédulo.
‘Não tem como. Simplesmente não dá para ter uma conversa normal com esse cara.’
Ele admitiu para si mesmo que o erro foi seu por tentar. No fim das contas, o estrago estava controlado, e isso bastava. Ele estava satisfeito por ter evitado mais problemas antes que algo pior acontecesse e se preparou para sair.
Dane se virou para ir embora.
— Espera.
A voz de Grayson o fez parar. Contrariado, ele olhou por cima do ombro. Grayson franziu a testa, olhando fixamente para ele.
— É só isso?
— É.
A resposta curta fez Grayson arregalar os olhos por um momento, antes de franzir as sobrancelhas.
— Então você me arrastou até aqui só para isso? Só isso?
Ele repetiu “só isso” mais algumas vezes, levantando e abaixando as mãos em indignação.
Agora foi Dane quem perdeu a paciência.
— Mas que porra você esperava, seu lunático? O que mais a gente poderia fazer aqui?
Com um tom irritado, Grayson soltou um breve suspiro.
Foi aí que algo na mente de Dane – que até então era apenas uma sensação incômoda – tomou forma de verdade. Lentamente, ele se inclinou para um lado, apoiando o peso em uma perna, e olhou para Grayson estreitando os olhos.
— Você não estava esperando que eu… que nós fizéssemos alguma coisa aqui, estava?
Ele fez uma pausa dramática antes de completar:
— … fazer alguma coisa com você?
A boca de Grayson se curvou para cima, e as malditas bochechas voltaram a corar. ‘Droga, esse maluco!’ Dane cerrou os punhos, tremendo de leve, mas logo relaxou e soltou um suspiro impaciente.
— Esquece. Como eu já disse, aquilo foi um acidente, e nunca mais vai se repetir, então tira isso da sua cabeça, entendeu? — Em seguida fez questão de acrescentar, com uma dose extra de sarcasmo: — Perder a memória é praticamente a marca registrada de vocês, Alfas dominantes. Não é? No seu caso, que já não bate muito bem da cabeça normalmente, não parece tão impossível.
Dane deu duas batidinhas na própria têmpora com o indicador, mas no instante em que se virou, se arrependeu. Precisava mesmo ter falado desse jeito? Um resquício inútil de culpa o fez olhar para trás, e então ele congelou.
Grayson estava ali, coçando o queixo distraidamente, olhando para o nada como se estivesse imerso em um pensamento profundo.
— O que você está fazendo?
Dane perguntou antes que pudesse se conter. Havia algo naquele silêncio que lhe causava um mau pressentimento. Assim que ele demonstrou interesse, Grayson piscou os olhos brilhantes, como se nada tivesse acontecido, e respondeu com naturalidade:
— Estava calculando quanto tempo levaria para acumular feromônios suficientes para perder a memória.
Dane sentiu o próprio cérebro travar diante da resposta absurda, mas Grayson ainda não tinha terminado. Ignorando o olhar incrédulo do outro, ele continuou num tom sério, como se estivesse realmente ponderando sobre um grande dilema.
— Da última vez, você quase esgotou meus feromônios. Então eu acho que vai demorar um pouco para eu acumular o suficiente para apagar as lembranças… E agora? Que problema.
— Ha…
Dane soltou uma risada curta e imediatamente se amaldiçoou por, um minuto antes, ter sentido culpa. Sentir remorso por um sujeito desses? Eu sou um idiota.
Ele se virou, resmungando, mas de repente ficou curioso. Esse cara realmente não entende nada sobre emoções? Com a testa franzida, ele olhou para trás. Claro, Grayson ainda estava olhando para ele, e quando seus olhos se encontraram, Dane perguntou, ainda com uma expressão carrancuda.
— Você já sentiu tristeza? Felicidade? Qualquer coisa assim?
Grayson só piscou, encarando-o com uma expressão vazia, como se a pergunta em si não fizesse sentido.
— Quero dizer…
Por um instante, Dane se sentiu como a professora Sullivan tentando ensinar a Helen Keller o que era “água”.
Dane sentiu-se desanimado ao tentar explicar o significado de suas próprias palavras. ‘Como diabos esse cara interage com outras pessoas? Então caiu a ficha: ah, claro. Alfas dominantes só andavam com outros Alfas dominantes, então provavelmente não foi difícil para ele.
— Mas medo você sabe o que é, né?
Quando Dane apontou isso, Grayson inclinou a cabeça novamente. Dane sentiu o peito apertar mais uma vez e perguntou:
— Como você se sentiu quando eu te ataquei?
Dessa vez, ele tinha certeza da resposta. Afinal, lembrava muito bem de Grayson gritando, apavorado, pálido como um fantasma. Mas, ao contrário do que esperava, Grayson suspirou… e, de repente, seu rosto corou.
— Foi bom.
Dane ficou momentaneamente sem palavras. Piscou, abriu a boca para falar algo, mas nada saiu. Pela primeira vez, sentiu que sua capacidade de argumentação o abandonou.
Ele sacudiu a cabeça, recuperando-se, e corrigiu:
— Não, antes disso. Quando você estava fugindo. — Ele continuou rapidamente, tentando guiar Grayson para a resposta certa. — Você gritou que não queria ser estuprado, lembra? Tenta pensar bem… O que você sentiu naquela hora?
‘Lembra disso. Lembra, porra.’ Ele repetiu mentalmente, agora com um senso de missão.
— Ah.
Dane prendeu a respiração. Será que finalmente ele tinha entendido?
Mas claro, era apenas um engano.
— Não lembro — respondeu Grayson, com o mesmo brilho leve no olhar. — Porque depois ficou muito bom.
—Droga, você…. caramba!
Dane não aguentou mais e “PÁ!” desferiu um chute no tronco da árvore ao lado. Será que tentar ensinar algo a esse bastardo foi um erro desde o início? Como os pais desse sujeito o criaram? Ele estava em dúvida se deveria admirar a grandeza dos pais por criá-lo ou xingá-los por soltarem um filho desses no mundo.
Foi nesse momento que Grayson abriu a boca.
— Então… o que eu senti naquela hora não era alegria? Ou felicidade?
A expressão genuinamente confusa dele fez o sangue de Dane ferver. Mas, ao mesmo tempo, lembrar que até essa cara de ansiedade não passava de uma farsa só tornou tudo ainda mais irritante. Era como dar de cara com um muro intransponível.
— Não, seu idiota! Aquilo era só prazer físico! Ou, sei lá, sua dopamina disparando por causa da liberação de feromônios!
Dane cuspiu as palavras, de forma áspera, e passou a mão pela testa latejante. Como ele podia enfiar isso na cabeça desse maldito? E então, sem pensar muito, ele abriu a boca de novo.
— Você…
Ele ia perguntar como foi ficar trancado naquele porão? Mas a pergunta morreu na garganta. Era cruel demais. Mesmo sem saber ao certo o que Grayson Miller sentia sobre aquilo, Dane não conseguia obrigá-lo a dizer.
— Ha…
Ele soltou um suspiro longo, encarando o céu. De repente, tudo pareceu ridiculamente inútil. Que diferença isso faz?
— Esquece. Já deu.
Sua voz soou exausta enquanto ele se virava.
‘Nunca mais. Nunca mais. Vou desperdiçar minha energia com essa idiotice. Se meter nos problemas dos outros foi um erro desde o início.’
— Dane…
Foi quando Grayson chamou seu nome. Ele parecia querer dizer algo, mas não teve tempo. Quase ao mesmo tempo, o celular de Dane tocou, e ele, sem ouvir Grayson, verificou o telefone. Ele franziu a testa ao ver um número desconhecido, mas logo apertou o botão para atender.
— Alô?
Se fosse telemarketing, ia desligar na hora. Mas do outro lado veio apenas silêncio.
‘Que porra é essa?’
Ele já ia encerrar a chamada quando, no último segundo, a voz incerta de uma mulher rompeu a quietude.
[O-Oi… Alô?]
— Quem é?
Dane perguntou sem rodeios. Ele ouviu o som seco de uma respiração nervosa antes da resposta hesitante.
[Hum, naquela dia… você disse que iria… comigo ao hospital, lembra?]
A voz fraca e trêmula, carregada de nervosismo, fez Dane parar no mesmo instante. Seus passos diminuíram até ele ficar completamente imóvel.
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Continua..